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2ª Gaveta – Dj Sims e Cachapa”

Data de lançamento: 14/11/2020

Data da recensão: 12/01/2020

Cachapa - 2ª Gaveta.jpg

 

Num ano totalmente atípico e que deixou o Mundo com o coração nas mãos, e do qual ainda estamos a recuperar, tivémos também muitas surpresas agradáveis. O álbum “2ª Gaveta”, de DJ Sims e Cachapa foi, sem dúvida, uma delas. 


Comecemos, portanto, com sensatez, a nossa viagem sonora: pelo início.

Depois de ter lançado, no mesmo ano, o seu projecto de apresentação, a mixtape Dicas Sem Limite”,  o rapper eborense Cachapa deixa-nos agora mais um pouco da sua “Herança”, e abre o cofre das jóias com uma profunda auto-reflexão e uma perigosa auto-exposição, admitindo abertamente a sua procura pelo “sentido disto”. Cachapa espelha a sua alma nas letras, admitindo publicamente a sua desilusão para com o lado mais negro do ser humano, acompanhada de uma premente necessidade de mudança e de diferença. O peso nos ombros que a sua própria “Herança” lhe impõe, chega-lhe para não querer “estar no rebanho”, e no fundo sabe que isso o deixa em paz consigo próprio.

Cachapa sabe onde ir buscar rimas e mais rimas, e fá-lo com agilidade ao vasculhar o fundo da “2ª Gaveta”. Mas nem tudo são rosas, e Cachapa não perde tempo, ao abrir as hostilidades logo na segunda faixa: “Espalha-Brasas”. Punchliner de pura raça alentejana, este “mero garoto de Évora” mostra o seu desprezo por “frases feitas” e faz um esforço evidente por distinguir-se “da tua laia”; mas também dá uns toques de farmácia, recomendando prontamente um “creme para essas dores de cotovelo”. E ainda mal refeitos do trauma inicial, eis que somos atacados com os primeiros arranhões de Sims neste projecto, homem responsável por toda a coesa e fantasmagórica estrutura sonora do álbum. Mas já lá vamos...

Homem de carácter “frio”, como ele próprio se intitula em “Perfil”, Cachapa mantém este último “mesmo com a cara de frente”. A humildade, contudo, também faz parte do conjunto e é evidente quando nos diz que “o hip-hop narra vidas”, num respeitoso cumprimento às verdadeiras raízes do movimento.


Mas Cachapa não tem muita paciência para jogos, e quer mais é que “TuTaFodas”. Numa tentativa consciente de auto-suficiência lírica, produz escrita para “consumo próprio”, distribuindo o excedente aos ouvintes de forma rápida e gratuita. Com o passar do tempo, vamos vê-lo “adquirindo peso” (que mais tarde compensa com uma corrida em flow rápido, em “Fat&Fit”); mas continua em forma para poder usar “o rap como um fato”, que lhe assenta como uma luva, e ainda nos  mostra os seus dotes futebolísticos com “letras tipo Di Maria”. Espectáculo.

E depois do treino diário, nada melhor que um merecido e temporário descanso, no conforto do “palácio dos Dukes”, onde, para além de Sims, se faz acompanhar de outro seu conterrâneo, amigo e comprovado rapper eborense: KrazyDread. Esta é a única participação no projecto, portanto uma honra para quem escuta este projecto, e que merece atenção a cada segundo e a cada rima debitada. KrazyDread imprime, mais uma vez, o seu habitual carimbo do sauce, sem precisar de grife nem artifícios para nos deixar de ouvido cheio. O seu “amor pela cultura” é mais do que evidente, e demonstra-o linha-a-linha. “Duke” é uma faixa feita “memo a sério”, onde cabem rimas cuspidas com “mestria e mistério”.

Ao estilo de um velho mestre de Kung-Fu, o nosso anfitrião presenteia-nos com uma privilegiada “vista para o show” em “Microphone Master”. Sem truques nem salamaleques, Cachapa serve-nos um forte e amargo “café depois de almoço”, capaz de fazer subir a tensão até aos mais experientes, e que apanha de surpresa os mais incautos. E se outras boas razões não houvessem, só este tema bastaria para lhe fixarmos o nome. 


FdB (Filho de um Bancário)” é outro tema pungente e que traz ao de cima a sua veia de storyteller. Através de uma estrutura textual muito bem conseguida, “FdB” conta-nos a história de um drama familiar, que deve ser mais ouvido que explicado... Felizmente é também um tema que nos alegra e perfuma a casa de quem ouve, já que “cheira a liamba que não se pode”. Mas explicações não servem de muito, e o melhor mesmo é inalar – perdão: ouvir o tema.

E se por acaso o cérebro ficar um pouco “lento” depois disto, o melhor mesmo é enfiar a cabeça em água fria até ter um “Brainfreeze” – mais um tema de storytell que nos deixa a pensar na vida e nas incertezas do comportamento humano: amizades, engates, roubos, drogas, rimas disparadas sem pensar... you name it! O que é certo é que, em “Brainfreeze”, ele nos narra um pouco das suas aventuras pela cidade de Évora, bem como a sua especial relação artística e pessoal com Sims. 

E é dele que falaremos a seguir; pois seria, no mínimo, uma tremenda injustiça escrever estas linhas sem referir o homem de armas por trás de toda esta sonoridade:

DJ Sims é já um veterano, com pouco ou nada a provar na sua área. Do scratch aos instrumentais, dos álbuns às mixtapes, tem feito de tudo um pouco ao longo dos anos. Criador do clássico “Onde é que tá as mortalhas?” (juntamente com Pródigo), bem como dum outro projecto mítico do Hip-Hop lusitano,“Dentes de Ouro e Flow de Platina”, o DJ eborense havia-nos já presenteado, em 2019, com o raro EP “Torto”. Desta feita, Sims resolve agora criar toda uma nova e refrescante sonoridade, perfeita para as rimas de Cachapa. Os seus instrumentais são, simultânea e paradoxalmente, a linha condutora para o conceito do álbum, e o terreno onde as rimas de Cachapa podem florescer à sua vontade. Uma mistura perfeita, sem mais disto nem menos daquilo. E quem ouve reconhece facilmente essa harmonia entre ambos – até porque sem ela este álbum não seria o que é: uma masterpiece. Falamos, portanto, não só de rimas exímias, mas também de instrumentais totalmente coerentes entre si, com uma sonoridade rica e envolvente, em que os baixos harmoniosos são cortados com tarolas que nos apanham de surpresa; e em que o ritmo convida efectivamente a disparar umas rimas sobre eles. E para isso lá está Cachapa, claro.

Um exemplo disso é, sem dúvida, a faixa “Fat & Fit”. Neste tema vivo e enérgico, com compassos que mudam a meio do beat, Sims consegue criar as condições perfeitas para Cachapa soltar o seu flow mais rápido e atlético, deixando-nos a suar no final, depois de nos ter mandado “ao tapete” várias vezes. Ora envolvido na sua egotrip, ora disparando punchlines “em rimas obeso”, Cachapa “vira a mesa”, pondo as nossas ideias do avesso. Terminando com um solo de scratch de Sims, esta é sem dúvida uma das faixas com mais peso neste projecto 100% alentejano.

Ainda numa linha mista de egotrip e punchline, Cachapa mostra-nos, em “Rap Pleno”, que “nada acontece por acaso”: não é de todo a sorte, mas sim o “skill de às”, o que faz deste MC aquilo que ele é. E, ainda com o balanço da faixa anterior no corpo, somos levados a “dar à perna” e reparamos que Cachapa não mente, quando nos diz que é “rara a palavra que eu dite que não rime”. Isso torna-o realmente único neste aspecto.

Caminhando para a parte final do disco, eis que encontramos uma faixa que pode ser considerada “Inigualável”: aqui, uma vez mais, Cachapa mergulha numa egotrip, sem por isso comprometer necessariamente o seu lado altruísta. A consciência social é algo que também habita o seu espírito, e isso torna-se evidente quando afirma que “triste é haver pessoas que nem conheçam tecto”. Além disso, o nosso anfitrião mostra-nos o seu próprio “Exemplo” e alerta-nos para a necessidade de aproveitar o melhor de cada momento, já que “a vida é escassa”. É sem dúvida um bom conselho, sobretudo para aqueles que ainda não perceberam que “isto da vida não é ver passar os outros, e que o foco nos objectivos pessoais pode ser a diferença entre dar o “Tiro & Queda”. Há até quem diga que “não é sorte, é talento”. Quem sabe?...

Em termos de produção, a “2ª Gaveta” está irrepreensivelmente arrumada, como não poderia deixar de ser. Sims nunca deixa de nos surpreender com a forma como constrói os seus instrumentais, deixando clara a sua marca (algo muito difícil!) e deixando transparecer a sua preocupação com os mais ínfimos detalhes, caracerística sui generis dos grandes produtores. Os seus beats são de uma qualidade superior à média, e os seus scratchs são sempre bem colocados, qual alfaiate que sabe tecer as suas peças com amor e paciência.

Em suma, este é um projecto que vale totalmente a pena ouvir, sob prejuízo de se perder uma rara oportunidade de escutar (e não apenas ouvir) o melhor que por cá se faz. É não só um dos projectos essenciais de 2020, mas também dos próximos anos; pois tenho a certeza que irá envelhecer como o Vinho do Porto. E daqui a 10 ou 20 anos, vão ver se eu tinha ou não razão... Um brinde!


Frédéric Bernard